Anotações de um caderninho espiral

Impressões sobre aquilo que acontece ao meu redor

sexta-feira, 31 de março de 2006

Questão de singularidade no jardim

Não era uma flor como qualquer outra. Nenhum botânico conseguia classificá-la pois reunia os melhores atributos de cada um dos mais belos exemplares já estudados. Os poetas sofriam por não serem capazes de incluí-la em nenhum verso. Quando se atreviam a enaltecer seus atributos ou simplesmente descrevê-la, acabavam vencidos pelo medo de diminuir sua beleza. Um floricultor disse certa vez que não ousaria vendê-la porque ninguém, nem mesmo a pessoa mais rica do planeta, teria dinheiro suficiente para comprá-la.

O jardineiro, responsável por cuidar daquele exemplar raríssimo, fornece incansavelmente doses diárias de carinho e amor, os únicos nutrientes que mantinham sua beleza inabalável. Em troca, tinha o direito de sentir o inigualável perfume que exalava. Ao respirá-lo, absorvia em sua plenitude a verdadeira essência do amor. A delicadeza de cada uma das pétalas se convertia em sorrisos encantadores. Ao vê-la, seus olhos podiam enxergar claramente as verdadeiras cores que a natureza oferece àqueles que sabem apreciá-la.

Como suas características deixavam a vida com um sabor especial, o jardineiro caminhava radiante como os raios de sol de um amanhecer de outono. Porém não era também capaz de defini-la, descrevê-la e muito menos avaliar seu preço. Aquela flor o cativou de tal forma que é e será a única no mundo para todo o sempre.

sexta-feira, 24 de março de 2006

Uma cervejinha para curar os males do corpo

Já houve um tempo – longínquo, é verdade – em que os médicos nem imaginavam que a cerveja deveria ser bebida com moderação para evitar problemas de saúde. Pelo contrário, os sumérios talvez tenham sido um dos primeiros povos a ingerir a bebida como remédio. E para os egípcios, não havia nada de mais eficiente no tratamento de problemas intestinais e estomacais. Até as grávidas podiam se beneficiar de seus extraordinários poderes curativos.

Uma tabuleta da cidade suméria de Nippur é o registro mais antigo do uso do álcool na medicina. Datada de cerca de 2100 a.C., contém uma série de receitas médicas onde a cerveja é a base de todos os medicamentos. No Egito Antigo, o Papiro de Ebers, datado de cerca de 1500 a.C., possui centenas de receitas para remédios à base de ervas, muitas das quais envolvem a cerveja. O documento garantia que ao misturá-la com a metade de uma cebola, a prisão de ventre acabaria no ato e os faraós poderiam ir aliviados para o trono. Já sua mistura com azeitonas salpicadas curava a indigestão. E se açafrão e cerveja fossem esfregadas na barriga de uma grávida, ela estaria livre das famigeradas dores do parto.

segunda-feira, 20 de março de 2006

Sobre a angústia que não faz o tempo parar

Dezoito horas, doze minutos e quarenta e quatro segundos. Olhar aquele relógio de parede o torturava. Cada volta que o ponteiro dos segundos completava era como se um punhal penetrasse lentamente no seu coração. Subitamente, nasceu o desejo de arrancar as pilhas. Acreditou que poderia dar cabo ao sofrimento. Mas do que adiantaria? Dentro de instantes, o sol começaria a se por e a luz que entrava pela janela da sala ficaria fraca porque apenas a iluminação da rua faria com que ele pudesse enxergar as próprias mãos. A lâmina fria e afiada não deixaria de entrar cada vez mais no peito dele. Não se levantou da cadeira e acabou deixando as pilhas lá onde estavam. E o ponteiro vermelho e fino como uma agulha insistia em levar sessenta segundos para dar uma volta completa no relógio de parede. Sete horas, doze minutos e quarenta e quatro segundos.