“Talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima dos outros.”. Mas por que os afortunados, que não têm motivos para sofrer, nunca estão satisfeitos? A frase que abre esse texto foi pinçada do livro Nenhum olhar, do autor português José Luís Peixoto e a indagação, por sua vez, saiu da minha cabeça. Em sua obra, Peixoto descreve a dura vida dos habitantes do Alentejo. Localizada no sul de Portugal, é a região mais pobre da União Européia. Castigados pela miséria, os habitantes que vivem naquela terra passam os dias apenas buscando meios para sobreviver sem saber ao certo porque nasceram. A falta de esperança reina absoluta.
Já no Brasil três casos ocorridos nos últimos dias mostraram que ninguém tem pudores em passar a perna nos outros. Se em algum momento poderia haver uma pontinha de esperança por parte da maioria que recebeu o sofrimento em punhados generosos, a minoria que não sofre porque não recebeu sua parcela de sofrimento é capaz de destroçar sem nenhuma cerimônia qualquer tipo reação frente às dificuldades. A falta de escrúpulos e de vergonha moveu o assessor político a esconder alguns milhares de dólares na cueca. Há quem diga que algumas notas estavam marcadas. Isso que é dinheiro sujo! Piadinhas a parte, logo em seguida, um deputado-pastor evangélico foi pego com malas recheadas com milhões de reais após tentar embarcar em um jatinho. O deputado se defendeu ao afirmar que o dinheiro era proveniente de dízimos cedidos graciosamente durante os cultos. Curiosamente, haviam cédulas numeradas em seqüência. Uma dúvida paira no ar: será que os fiéis, em uma atitude de louvor supremo, entraram no banco em fila e se organizaram para sacar notas em seqüência? Por fim, a dona da loja mais cara do Brasil, que não queria perder dinheiro pagando taxas, quis ser mais esperta que todo mundo e declarava, por exemplo, um vestido de R$ 3 mil por ínfimos US$ 15 e depois o vendia por R$ 5 mil. É genial essa fórmula para lucrar sem correr o risco de ter prejuízo, né?
Em um cenário onde a vergonha desceu pelo ralo, a religião foi varrida para debaixo do tapete e o luxo não passa de um escarro esquecido em um chão poeirento, todos os brasileiros transformam-se em palhaços, mas, mesmo enganados, acham que podem levar um por fora numa boa. Aí vira um salve-se quem puder! E quando alguém que saiba ler e tenha dinheiro para comprar um jornal, vai abri-lo e perceber que mais uma pessoa que não sofre vai querer mais e não medirá esforços para se empanturrar e fazer aqueles que sofrem sentirem-se, como de costume, perfeitos idiotas. “Um homem sem certezas perde quase tudo de ser homem”, escreveu Peixoto. E sobra alguma coisa desse quase? Se sobrou, alguém deve estar tentando puxar o tapete do outro para lamber as migalhas.